As “excelências” da polícia com medo de uma polícia de excelência
Mal acaba de ser apresentado o projeto de Lei 7.402/2014, que propõe a modernização da investigação criminal no Brasil, a Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal já começa a bombardeá-lo com argumentos que tentam levar à opinião pública a ideia de que a proposta se trata da ressurreição do “Delegado calça-curta”. Essa figura, que perdurou do Brasil império aos anos de exceção, era representada pelo dirigente policial nomeado pelo mandatário de plantão e que atuava segundo interesses políticos.
Esse argumento tenta desautorizar as constatações de institutos e pesquisadores dedicados ao estudo da segurança pública no Brasil, os quais, diante dos números da ineficiência da investigação criminal, têm apresentado propostas de mudanças radicais, tanto no modelo de persecução penal, quanto nas estruturas das organizações policiais.
O Brasil, durante décadas, tem negado a natureza científica da investigação criminal, fazendo dela um procedimento burocrático, caro e ineficaz, personificado pelo delegado de polícia e materializado pelo inquérito policial. O resultado desse modelo ultrapassado é que apenas 4 mil dos cerca de 50 mil homicídios cometidos por ano no país são solucionados, pois os inquéritos policiais, muitas vezes, não passam de repositórios de documentos que acabam arquivados.
Por outro lado, a estrutura estratificada das polícias brasileiras estabelece duas categorias de policiais: a dos delegados (detentores de todo o poder de mando) e a dos agentes, escrivães, papiloscopistas e peritos (investigadores). Essa estrutura faz com que os policiais que realmente investigam os crimes não tenham nenhuma perspectiva de crescimento funcional, pois, mesmo que tenham anos de experiência em investigação criminal veem-se chefiados por delegados recém-egressos da Academia de Polícia, e em muitos casos, recém-saídos dos bancos das faculdades de Direito. Diante disto, torna-se pertinente a seguinte indagação: Será que apenas o conhecimento jurídico é suficiente para o combate ao crime? A distorção do modelo brasileiro contrasta com a realidade de outras polícias mundo afora. No FBI (polícia federal americana), por exemplo, as funções de chefia são exercidas por policiais com comprovada experiência profissional, advinda de anos de atuação dentro do órgão e com formação adequada na área em que atuam. Em outros países, os conhecimentos jurídicos não compõem a essência do trabalho policial, pois a obtenção de provas para o processo judicial é feita mediante o trabalho interdisciplinar de equipes de investigação, baseado em conceitos técnicos e científicos. Assim, evidencia-se, por óbvio, que a polícia não é formada por juristas, mas por especialistas em investigação. Ao contrário, no Brasil, para a assunção do papel de chefe de uma investigação, basta que o portador do diploma de graduação em direito seja aprovado no concurso para delegado.
Na contramão dos anseios da sociedade, as entidades representativas dos delegados de polícia – em especial, a dos delegados de Polícia Federal – têm defendido que a concentração de poder na mão dos delegados é fator que pode contribuir para o combate à corrupção e ao crime organizado, garantindo poder e independência aos ocupantes desse cargo. Entretanto, nos últimos anos, graças ao forte lobby dentro do Congresso Nacional, diversas leis conferiram mais poder aos ocupantes deste cargo, sem que isso representasse qualquer avanço nos números do combate à criminalidade no Brasil. Pelo contrário, o distanciamento dos delegados de polícia dos demais integrantes da carreira policial apenas fez ruir o relacionamento organizacional dentro da Polícia Federal, fazendo com que a produtividade do órgão despencasse. Além disso, o número de casos de assédio moral e de suicídio de policiais federais transformou-se em funesta estatística que deu lugar aos resultados apresentados pelo órgão no início da década passada.
Atualmente, o delegado de polícia (que exige ser chamado de Vossa Excelência) é visto pelos demais policiais como um “despachante policial”, pois não participa das investigações e ocupa uma posição de gabinete, transformando o que deveria ser um trabalho técnico e científico, num amontoado de papel, cujo único mérito é produzir as estatísticas da ineficiência da investigação criminal brasileira, que tem índice de elucidação de homicídios próximo aos 8%. Portanto, está claro que não é com a concentração cada vez maior de poder nas mãos do delegado de polícia que esses índices risíveis serão superados.
O projeto de lei não aponta o modelo atual de investigação como causa da criminalidade, mas como origem da ineficiência e da impunidade. Assim, a proposta prevê que a investigação será alcançada apenas quando métodos científicos forem utilizados e a chefia das investigações sair dos gabinetes e for enfrentar o crime onde ele está: nas ruas. Além disso, é fundamental que o processo investigativo e as carreiras policiais valorizem as diversas especialidades e a meritocracia dos policiais mais aptos e qualificados, sob a perspectiva de ascensão profissional.
Assim, o que o PL 7.402 objetiva não é a ressurreição do delegado calça-curta, mas o aproveitamento do conhecimento técnico-científico e da experiência investigativa em prol da elucidação criminal. Em nenhum artigo do projeto de lei está prevista a possibilidade de desrespeito ao princípio do concurso público, pois este é exigido para o ingresso na carreira policial federal que, segundo o art. 144 da Constituição Federal, é uma carreira única. O que se pretende, como se disse, é fazer com que o princípio da eficiência (também previsto na Constituição) passe a finalmente vigorar nas instituições policiais brasileiras. Além disso, como a proposta prevê a atuação do Ministério Público em todas as fases da investigação, percebe-se que o argumento que aponta a possibilidade de manipulação política das investigações não passa de desespero de algumas “neo-excelências”, que tentam a todo custo manter e ampliar o seu anacrônico poder, mesmo que o preço disto seja a escalada da impunidade no Brasil.
Por Antônio José Moreira da Silva, publicado do Estadão